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Aspectos sobre testamento em caso de bens situados no Brasil e no exterior

Cinesvaldo Cavalieri Junior

Conforme expusemos no artigo “A utilização do Protocolo Familiar no âmbito de um Planejamento Patrimonial e Sucessório”, elaborado pela advogada Bruna Fedato, que você confere aqui, o Planejamento Patrimonial e Sucessório é um conjunto de medidas eficaz para determinar, em vida, as diretrizes para a disposição (distribuição) dos bens por ocasião do falecimento do proprietário, entre outros aspectos.

Entre as possibilidades de atos relativos à disposição patrimonial em vida, no âmbito de um Planejamento Sucessório, está o TESTAMENTO, cujas regras estão previstas no Título II do Livro V do Código Civil, entre outras disposições legais.

Este artigo se propõe a analisar aspectos específicos relativos às seguintes indagações (1):

caso uma pessoa possua patrimônio no Brasil e no exterior e deseje dispor de seu patrimônio por meio de testamento,

(i) Qual será a legislação aplicável?

(ii) É possível elaborar testamento no Brasil que disponha sobre os bens localizados no exterior ou vice-versa?

(iii) Em caso positivo, quais serão os procedimentos aplicáveis?

Em 1973 foi realizada, em Washington, a “Convenção Relativa à Lei Uniforme sobre a forma de um testamento internacional”. Em linhas gerais, o Anexo da Convenção traz previsões obrigatórias e modelos para a elaboração de um testamento internacional, de modo a ser reconhecido e validado pelos demais países signatários. Todavia, o Brasil não é signatário da Convenção e, consequentemente, não a ratificou, de modo que a análise dos problemas apresentados deve ser feita a partir das normas de direito nacional.

O caput do artigo 10 da Lei nº 4.657/42 (Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro ou LINDB) prevê, como regra geral, que a sucessão deverá obedecer à lei do país do domicílio do falecido, independentemente da situação e/ou natureza dos bens.

Todavia, o parágrafo primeiro do referido artigo traz uma exceção à regra geral, no sentido de que, havendo herdeiros necessários (que são, além do cônjuge, os descendentes e os ascendentes do falecido, conforme prevê o artigo 1.845 do Código Civil), em relação aos bens situados no Brasil será aplicada a lei brasileira caso esta seja mais favorável aos herdeiros necessários.

É imprescindível, portanto, que na análise de cada caso seja realizado estudo detalhado da legislação estrangeira pertinente, de modo a possibilitar a definição sobre a lei mais favorável aos herdeiros necessários.

Especificamente sobre o testamento, o artigo 23 do Código de Processo Civil prevê que compete exclusivamente ao Judiciário brasileiro realizar a confirmação de testamento particular e de inventário/partilha de bens situados no Brasil, mesmo que o falecido seja estrangeiro ou possua domicílio no estrangeiro.

Ainda, o artigo 610 do Código de Processo Civil dispõe que, em caso de testamento, o inventário ocorrerá obrigatoriamente na modalidade judicial.

Portanto, via de regra:

(i) o inventário no Brasil será judicial em caso de testamento, seja este elaborado e registrado no Brasil ou no exterior; e

(ii) a jurisdição brasileira limita-se aos bens situados no Brasil, não abrangendo os bens situados no exterior, razão pela qual deverá haver, obrigatoriamente, inventário (ou procedimento similar) no exterior em relação aos bens lá situados (princípio da pluralidade dos juízos sucessórios) (2).

Além disso, é importante destacar que no Brasil devem ser cumpridas as disposições relativas à legítima, de modo que, havendo herdeiros necessários, o testador somente poderá dispor de metade de seu patrimônio localizado no Brasil por ocasião do testamento (artigos 1.846 e 1.857, § 1º, do Código Civil).

De outro lado, as regras atinentes à abrangência da disposição patrimonial por meio de testamento variam de acordo com o ordenamento jurídico de cada país. Nos Estados Unidos, por exemplo, a liberdade do testador é absoluta, de modo que a disposição testamentária poderá abranger a totalidade de seu patrimônio.

Desta forma, especificamente em relação aos Estados Unidos, se houver herdeiros necessários será aplicada a lei brasileira em relação aos bens aqui existentes, por ser mais favorável aos herdeiros (resguardo da legítima) e, em relação aos bens situados nos Estados Unidos, será aplicada a lei estrangeira, havendo, inclusive, recentes julgados do STJ nesse sentido (3).

Em relação ao cálculo da legítima, o entendimento majoritário no Brasil é no sentido de que não se computam os bens localizados no estrangeiro, apenas os aqui situados. Todavia, há entendimento no sentido de que devem ser considerados os bens localizados no estrangeiro para alcançar a igualdade entre herdeiros/cônjuges na partilha dos bens (visando ao alcance de equiparação, ainda que parcial, do patrimônio recebido por cada herdeiro). Portanto, é possível que haja discussão judicial sobre o tema por ocasião da abertura da sucessão.

Estabelecidas as premissas básicas, surgem as seguintes indagações:

Havendo testamento realizado no exterior abrangendo bens situados no Brasil, qual procedimento deverá ser adotado?

Deverá ser proposta ação judicial para confirmação de testamento, nos termos do artigo 23, II, do Código de Processo Civil (observados, entre outros, os procedimentos de apostilamento e tradução juramentada). No respectivo processo será analisado se o testamento cumpriu:

(i) as formalidades legais relativas ao país em que foi realizado; e

(ii) as normas brasileiras de ordem pública relativas à sucessão (como a observância à legítima).

Em se tratando de testamento exclusivamente sobre bens localizados no exterior, não haverá necessidade de nenhum procedimento interno.

É possível elaborar testamento no Brasil abrangendo bens localizados no exterior?

Será imprescindível que, na análise de cada caso, seja realizado estudo detalhado da legislação estrangeira pertinente para verificar as regras relativas à possibilidade de homologação ou validação de testamento realizado no Brasil (e, em caso positivo, aos procedimentos necessários para tanto).

É certo, todavia, que para eventual homologação ou validação no estrangeiro de testamento elaborado no Brasil será necessário arcar com diversos custos, relativos a honorários advocatícios, traduções juramentadas e taxas judiciais, entre outros, que variam de acordo com cada país.

E se, no inventário judicial (ou procedimento similar) aberto no exterior, for proferida sentença dispondo sobre a partilha de bens localizados no Brasil?

Sem prejuízo das disposições legais sobre a exclusividade da jurisdição brasileira previstas no art. 23, II e III, do Código de Processo Civil, o Superior Tribunal de Justiça possui precedentes (4) no sentido de que é possível a homologação de sentença estrangeira que disponha sobre partilha de bens localizados no Brasil, em flexibilização à regra geral, desde que haja consenso entre as partes (e, consequentemente, inexista conflito em relação à partilha).

Após a realização de todos os procedimentos legais, por ocasião da partilha haverá incidência do ITCMD (Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doações) sobre os bens localizados no exterior?

A incidência do ITCMD sobre bens situados no exterior vem sendo amplamente debatida nos Tribunais brasileiros há anos, durante os quais foram proferidas decisões no sentido de que leis estaduais podem determinar a referida cobrança e decisões em sentido contrário.

O artigo 155 da Constituição Federal prevê, no inciso III de seu parágrafo primeiro, que, “se o de cujus possuía bens, era residente ou domiciliado ou teve o seu inventário processado no exterior”, o ITCMD somente poderá ser instituído por meio de lei complementar.

Visando à pacificação do tema, o Supremo Tribunal Federal, ao julgar o RE 851.108 (publicado em 20.04.2021, originando a Tese de Repercussão Geral nº 825), decidiu que: “É vedado aos estados e ao Distrito Federal instituir o ITCMD nas hipóteses referidas no art. 155, § 1º, III, da Constituição Federal sem a intervenção da lei complementar exigida pelo referido dispositivo constitucional”.

E referida Tese de Repercussão Geral foi reafirmada pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal na sessão virtual encerrada em 18.02.2022, que concluiu o julgamento de 14 Ações Diretas de Inconstitucionalidade ajuizadas pela Procuradoria-Geral da República (5).

Portanto, ao menos até a promulgação de lei complementar sobre o tema, não haverá incidência de ITCMD em relação aos bens situados no exterior.

Por fim, especificamente em relação aos Estados Unidos, qual será o imposto aplicável?

O imposto que incide sobre a herança nos Estados Unidos é o Estate Tax, cuja alíquota que variar entre 18% e 40% sobre o patrimônio do falecido. Também será necessário analisar a legislação do Estado em que estiverem situados os bens, para verificar eventual incidência de tributos estaduais adicionais.

Quanto ao Estate Tax, atualmente vigora uma isenção em relação a heranças de até UDS$ 11.7 milhões por pessoa (ou UDS$ 23.4 milhões por casal), sendo que: 

(i) a base de cálculo é o valor de mercado dos bens; e

(ii) a avaliação é feita considerando todos os bens deixados a título de herança, sejam eles situados nos Estados Unidos ou não (incluindo, portanto, os bens localizados no Brasil).

Ainda, há notícia de que o atual governo dos Estados Unidos pretende diminuir a referida faixa de isenção, mas ainda não houve deliberação sobre o tema.

Em conclusão, o testador que possua bens no Brasil e no estrangeiro poderá optar entre as seguintes possibilidades, sendo que a mais vantajosa somente será definida pós análise das peculiaridades de cada caso:

(i) se a legislação do país estrangeiro em que o testador também possua bens possibilitar a homologação ou validação de testamento realizado no Brasil, elaborar testamento no Brasil abrangendo os bens aqui localizados e os situados no estrangeiro (hipótese em que deverão ser observadas as disposições relativas à legítima em relação aos bens aqui localizados);

(ii) elaborar testamento no estrangeiro, abrangendo os bens lá localizados e os bens situados no Brasil (realizando, em relação a estes, o cálculo da legítima, de modo a facilitar o procedimento de validação do testamento no Brasil em relação aos bens aqui localizados); ou

(iii) elaborar testamento no Brasil e no estrangeiro, cada um relativo aos bens localizados no respectivo país.

Caso possua interesse na elaboração de testamento ou queira mais informações sobre os demais atos relativos à disposição patrimonial em vida, no âmbito do Planejamento Patrimonial e Sucessório, entre em contato conosco!

 


(1) Não se propõe, portanto, a esmiuçar as características gerais do testamento.

(2) Nesse sentido já se posicionou a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, ao julgar o REsp 1362400/SP, de relatoria do Ministro Marco Aurélio Bellizze, em 28/04/2015.

(3) A Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça entendeu, ao julgar o AgInt no AREsp 1297819/SP, de relatoria do Ministro Marco Aurélio Bellizze, em 15/10/2018, que: “Tendo em vista que a sucessão de bens do de cujus situados no estrangeiro regula-se pela lei do país alienígena, nos termos do art. 23, II, do CPC/2015 (art. 89, II, do CPC/1973), o qual preconiza o princípio da territorialidade, mostra-se descabida a solicitação de informações a instituição financeira situada no estrangeiro (Suíca no presente caso), uma vez que os valores lá constantes de titularidade do autor da herança, à data de abertura da sucessão, não serão submetidos ao inventário em curso no Brasil, devendo ser processada naquele país a sua transmissão a quem de direito”.

(4) Nesse sentido: (i) SEC 5.528/EX, Rel. Ministro Sidnei Beneti, Corte Especial, julgado em 25/04/2013; (ii) SEC 6.894/EX, Rel. Ministro Castro Meira, Corte Especial, julgado em 20/02/2013; (iii) SEC 5.822/EX, Rel. Ministra Eliana Calmon, Corte Especial, julgado em 20/02/2013; (iv) SEC 3.269/EX, Rel. Ministro João Otávio de Noronha, Corte Especial, julgado em 07/05/2012.

(5) ADIs nº 6817, 6821, 6822, 6824, 6825, 6827, 6829, 6831, 6832, 6834, 6835, 6836, 6837 e 6839.

date: March/2022

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