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Planejar é Preciso: O Caso Marília Mendonça e os Riscos da Sucessão Improvisada
Fernanda Klamas e Rafael Küster

A perda precoce da cantora e compositora Marília Mendonça, em novembro de 2021, gerou grande comoção nacional. Mas, para além do impacto emocional, o caso também trouxe à tona importantes reflexões jurídicas, especialmente sobre a organização sucessória de pessoas jovens com patrimônio significativo e múltiplas fontes de receita, como artistas, empresários e influenciadores.
A sucessão da artista, conduzida de forma discreta, tornou-se um exemplo concreto dos desafios da ausência de planejamento patrimonial prévio. Mais do que a simples transmissão de bens, o caso evidenciou as complexidades que envolvem ativos intangíveis, empresas, direitos autorais e herdeiros incapazes.
1.Planejamento sucessório não é questão de idade
A sucessão de Marília Mendonça foi judicializada por meio de inventário, sem registro público de testamento ou estrutura patrimonial formalizada anteriormente. Com o falecimento repentino, o espólio passou a ser administrado por sua mãe, que atua como representante legal do único herdeiro, uma criança.
A inexistência de um plano sucessório impõe, além da sobrecarga emocional à família, a necessidade de enfrentar um processo judicial frequentemente moroso, custoso e burocrático. Mesmo em contextos familiares estáveis, o inventário não planejado pode resultar em entraves operacionais e riscos de exposição patrimonial.
É necessário desconstruir a ideia de que o planejamento sucessório só se aplica a pessoas com idade avançada. Jovens com patrimônio relevante, especialmente aqueles cuja renda está atrelada à própria imagem ou a estruturas empresariais, devem ser orientados quanto ao uso de instrumentos como testamento, doações planejadas, holdings familiares e, em casos específicos, estruturas internacionais como o trust.
2.Herdeiros incapazes e os limites da jurisdição judicial
No caso concreto, o único herdeiro é uma criança, o que exige a atuação do Ministério Público como fiscal da lei e a supervisão do juízo da Vara de Família em todas as decisões que envolvam o espólio, inclusive movimentações financeiras ordinárias. Essa dinâmica acarreta um processo mais lento e com limitações técnicas para a gestão cotidiana do patrimônio.
Em situações como essa, uma alternativa pouco explorada no Brasil, mas amplamente utilizada em outros países, é o trust, um mecanismo que permite a segregação e administração fiduciária de bens em benefício de terceiros.
Embora ainda não regulamentado no Brasil, trusts regularmente constituídos no exterior vêm sendo reconhecidos judicialmente no Brasil quanto a seus efeitos patrimoniais e sucessórios, desde que não configurem fraude ou afronta à ordem pública. Para famílias com herdeiros menores ou acervos patrimoniais complexos, o trust pode oferecer:
- Proteção jurídica do patrimônio;
- Nomeação de administradores profissionais (trustees);
- Estabelecimento de regras personalizadas para distribuição de rendimentos
- Definição prévia das figuras que deverão garantir o bem-estar e saúde dos herdeiros; e
- Redução da necessidade de autorização judicial para atos de administração ordinária.
3.Direitos autorais: um patrimônio ativo que requer governança
Grande parte do legado econômico de Marília Mendonça é composto por receitas oriundas de direitos autorais, tanto pela composição quanto pela interpretação de obras musicais. Diferente de bens estáticos, esses ativos demandam gestão contínua, transparente e profissionalizada, visto que os direitos patrimoniais dos artistas são válidos por 70 anos após o seu falecimento.
No Brasil, ainda são limitados os mecanismos jurídicos voltados à sucessão e governança de ativos imateriais. Nesse contexto, instrumentos como holdings ou mesmo trusts com fins culturais e patrimoniais podem ser úteis não apenas para preservar a obra, mas também para garantir a continuidade da exploração econômica de forma ética, eficiente e conforme a vontade da titular.
Convém destacar que a estruturação desses instrumentos exige planejamento detalhado e acompanhamento técnico especializado.
4.A empresa por trás da imagem: sucessão também é governança
Além da carreira artística, Marília Mendonça atuava como empresária, com participação em empresas responsáveis pela gestão de sua imagem e negócios. Em situações como essa, a sucessão patrimonial também se confunde com a continuidade da atividade empresarial.
Muitos artistas confundem a figura da pessoa física com a jurídica, o que pode comprometer a perenidade dos negócios em caso de falecimento. Cláusulas específicas em contratos sociais, acordos de sócios ou instrumentos de governança familiar são fundamentais para assegurar que empresas vinculadas à imagem de uma pessoa consigam sobreviver a ela.
5.Advocacia preventiva como instrumento de continuidade e proteção
O caso de Marília Mendonça revela uma sucessão marcada por múltiplos desafios: herdeiro incapaz, ausência de planejamento formal, ativos autorais, estrutura empresarial e alta exposição pública. É, ao mesmo tempo, a demonstração da importância do papel pedagógico do advogado de promover a prevenção patrimonial entre seus clientes.
Planejar a sucessão é, em essência, um ato de cuidado e responsabilidade intergeracional. Significa garantir que aquilo que foi construído com esforço, talento e dedicação possa seguir adiante de forma ordenada, preservando o legado e evitando conflitos desnecessários.
A sucessão da artista ainda está em trâmite, mas já se apresenta como um caso paradigmático, com lições que extrapolam o universo das celebridades e se aplicam a qualquer pessoa com patrimônio relevante e preocupação com a continuidade de sua história.
Lições que ficam:
- Proteção jurídica do patrimônio;
- Nomeação de administradores profissionais (trustees);
- Estabelecimento de regras personalizadas para distribuição de rendimentos
- Definição prévia das figuras que deverão garantir o bem-estar e saúde dos herdeiros; e
- Redução da necessidade de autorização judicial para atos de administração ordinária.