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Como vender um imóvel que possui cláusula de inalienabilidade
Priscila Garcia
Quais são as cláusulas restritivas e qual o seu conceito?
As cláusulas restritivas nada mais são que limitações ao direito de propriedade, podendo ser impostas por força de lei, do interesse público ou do interesse privado. No caso do interesse privado, estas limitações podem ser atribuídas por meio de 3 cláusulas restritivas, sendo estas: inalienabilidade, impenhorabilidade e incomunicabilidade.
- A cláusula de inalienabilidade visa proibir a alienação do bem, tornando-o, por via de consequência, indisponível. Isso assegura que o bem recebido por doação ou por testamento não poderá ser alienado, seja a título gratuito ou oneroso.
- Já a cláusula de impenhorabilidade busca impor condições a fim de que o bem recebido a título de doação ou testamento permaneça no patrimônio do beneficiário apesar da existência de credores e/ou dívidas de qualquer natureza.
- E, por fim, a cláusula de incomunicabilidade tem como objetivo excluir o bem da comunhão, permitindo que o cônjuge beneficiário tenha direito exclusivo sobre o bem que receber por doação ou testamento, não se sujeitando ao patrimônio comum do casal.
Vale ressaltar que, de acordo com o art. 1.911 do Código Civil de 2002, a cláusula de inalienabilidade, quando imposta por ato de vontade aos bens, implica, automaticamente, impenhorabilidade e incomunicabilidade.
Portanto, pode-se concluir que a cláusula de inalienabilidade compreende as demais, possuindo maior força restritiva, conforme entendimento da Súmula 49 do Supremo Tribunal Federal. Porém, nada impede que as cláusulas de incomunicabilidade e de impenhorabilidade sejam instituídas separadamente, com efeitos menos abrangentes do que os alcançados pela inalienabilidade.
Dito isto, passa-se a analisar cláusula de inalienabilidade de forma mais aprofundada. Falaremos melhor sobre a impenhorabilidade e a incomunicabilidade em nossas próximas publicações.
A cláusula de inalienabilidade
Conforme demonstrado acima, a cláusula de inalienabilidade serve como um meio de vincular, absoluta ou relativamente, vitalícia ou temporariamente, os próprios bens em relação a terceiro beneficiário, que não poderá dispor deles, gratuita ou onerosamente, recebendo-os exclusivamente para usá-los e gozá-los.
Com isso, o efeito primordial da cláusula de inalienabilidade é impedir a alienação do bem gravado a qualquer título, ou seja, não se pode vender, doar, permutar ou dar tal bem em pagamento.
Ademais, a inalienabilidade pode ser temporária ou vitalícia. Se temporária, o beneficiário da liberalidade só poderá dispor do bem, após transcorrido o prazo determinado na cláusula. Se vitalícia, o beneficiário do bem gravado não poderá, em regra, dispor do bem até a sua morte.
Os meios e condições de imposição da cláusula de inalienabilidade
Para que as cláusulas restritivas sejam validamente impostas elas devem respeitar dois requisitos:
- a) que seja um ato de liberalidade (doação ou testamento), restando vedado que o próprio titular a imponha em seu próprio bem; e
- b) que não incida sobre a legítima dos herdeiros necessários, a não ser que haja justa causa devidamente consignada em testamento (art. 1.848, CC).
Assim, devido às críticas com relação à imposição desta cláusula – tendo em vista que gera uma insegurança no campo das relações jurídicas pela intocabilidade do bem e restrição da finalidade natural de todo patrimônio – o Código Civil de 2002, em seu art. 1.848, condicionou a imposição destes gravames à existência de justa causa, senão vejamos:
Art. 1.848 - Salvo se houver justa causa, declarada no testamento, não pode o testador estabelecer cláusula de inalienabilidade, impenhorabilidade, e de incomunicabilidade, sobre os bens da legítima.
A parte legítima equivale a 50% dos bens do testador, do qual os herdeiros necessários (ascendentes, descendentes e, a depender do regime de casamento, o cônjuge) não podem ser privados. Já a parte disponível, a qual compreende os outros 50% dos bens da herança, é aquela que qualquer pessoa que possua herdeiros necessários poderá dispor da maneira que quiser, inclusive instituir as cláusulas restritivas sobre todos os bens desta parte da herança.
Desta forma, o doador ou testador, caso também queira instituir a cláusula de inalienabilidade sobre os bens da legítima, com a intenção de garantir a segurança e o futuro dos donatários ou dos testamentários, deverá demonstrar que existe uma justa causa para tal ato. Por exemplo, no caso de o herdeiro ser um pródigo, ou seja, uma pessoa que dissipa seus bens, gastando mais do que o necessário (art. 1.782 do CC), ou de o mesmo ser acometido de uma incapacidade por doença mental, o que tornaria provável, nessas hipóteses, que ele dilapidasse a herança.
Quero alienar o meu bem. Posso cancelar esta cláusula? Se sim, como?
É importante ressaltar que o descumprimento deste gravame acarretará a nulidade do negócio jurídico que envolve a alienação do bem gravado (ou da penhora que incide sobre tal bem).
Por este motivo, caso o beneficiário desta cláusula tenha interesse na alienação do bem, ele(a) deverá buscar os meios judiciais ou extrajudiciais cabíveis para que tal negócio jurídico seja possível.
Assim, existem 3 meios de cancelar a cláusula de inalienabilidade de um bem: (i) pela via do acordo quando a cláusula de inalienabilidade tenha sido instituída por meio de doação feita em vida, e o doador ainda esteja vivo (retificação da escritura de doação em que ela foi imposta); (ii) pela via da autorização judicial, seja por meio do cancelamento do gravame (caso exista justificativa razoável – modificação da situação posta ou violação de princípios constitucionais pela manutenção do gravame) ou pela sub-rogação do mesmo (retirada da cláusula do imóvel que se pretende alienar e imposição do gravame em outro de valor equivalente ou superior).
No primeiro caso, sendo vivo o doador, a cláusula poderá ser revogada com expressa anuência do donatário, que poderá não ter interesse na renúncia pela qual o bem passa a ser disponível e de livre circulação, pois, como já visto anteriormente, a imposição da cláusula de inalienabilidade também implica na incomunicabilidade e impenhorabilidade. Portanto, a concordância do donatário apresenta-se como medida essencial para que o ato de revogação da cláusula de inalienabilidade não seja considerado nulo.
Desta forma, a renúncia deverá ser formalizada por instrumento público adequado, sendo válida a afirmação contida no art. 472 do CC, que estabelece que “o distrato faz-se pela mesma forma exigida para o contrato”. Assim, caso a doação instituindo a cláusula tenha sido feita por meio de escritura de doação, a revogação deverá ser feita pelo mesmo instrumento.
No caso da retirada do gravame por meio da sub-rogação, havendo interesse do proprietário, este poderá promover a substituição do gravame por outro bem de sua propriedade desde que este bem seja de valor igual ou superior ao do bem a ser substituído.
Para tanto, o proprietário precisará de autorização judicial, conforme estabelecido no art. 1.911, parágrafo único, do Código Civil:
Art. 1.911 – A cláusula de inalienabilidade, imposta aos bens por ato de liberalidade, implica impenhorabilidade e incomunicabilidade.
Parágrafo único. No caso de desapropriação de bens clausulados, ou de sua alienação, por conveniência econômica do donatário ou do herdeiro, mediante autorização judicial, o produto da venda converter-se-á em outros bens, sobre os quais incidirão as restrições apostas aos primeiros.
Ainda, nos tempos atuais, a melhor jurisprudência vem admitindo a validade da dispensa judicial das cláusulas restritivas (relativização das cláusulas restritivas), especialmente em relação a inalienabilidade, no todo ou em parte, até mesmo sem a necessidade da sub-rogação conforme exposto no parágrafo único do art. 1.911 do CC – ensejando no cancelamento do referido gravame.
Isto ocorre quando, na ótica da análise do caso concreto, restar claro que a manutenção deste gravame implicará em ofensa aos valores e princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, o direito à vida e à subsistência mínima, a solidariedade social e a função social da propriedade, bem como subversão à vontade do instituidor (doador ou testador), em especial quando a sua manutenção implicar em real prejuízo ao destinatário da liberalidade que visava beneficiar.
Ademais, se a situação posta, à época da doação, modificou, acarretando entraves à donatária, inclusive de ordem financeira, não se mostra pertinente a manutenção do gravame, por estar gerando efeito diverso do pretendido pela doadora.
Neste sentido é o entendimento do STJ em recente decisão em 2019, que declarou que as condicionantes podem ser afastadas diante da função social da propriedade e da ausência de justo motivo para a manutenção da restrição ao direito dos donatários.
Diante do exposto, apesar da retirada de um gravame ser uma exceção e não ocorrer na maior parte dos casos, entende-se perfeitamente possível esta retirada da cláusula de inalienabilidade por meio de:
1. Acordo, caso a instituição do gravame tenha sido realizada via doação em vida, e o doador ainda esteja vivo;
2. Autorização judicial, caso a instituição do gravame tenha sido realizada por meio de testamento, podendo o mesmo ser:
a. Cancelada (caso exista uma razão justificada pelo donatário ou herdeiro que evidencie modificação da situação posta à época da instituição do gravame e/ou a ofensa à princípios constitucionais e da dignidade da pessoa humana); ou
b. Sub-rogada (por meio da apresentação de outro bem de sua propriedade com valor equivalente ou superior ao bem a ser alienado).
Ainda há de ser destacado o fato de que essas cláusulas restritivas não podem ultrapassar a vida do donatário/herdeiro/legatário, uma vez que, ocorrendo a morte do beneficiário (a pessoa que recebeu a cláusula restritiva no bem), o bem volta a ser livre.
1REsp nº 1631278 / PR